Ahhhhh, discos com som lendário.
Aqueles discos que todo mundo conhece são a referência definitiva para ‘bom som’. Aqueles discutidos em convenções de áudio profissional por distintos senhores com rabos de cavalo ainda mais distintos. É - por exemplo - bem compreensível que qualquer disco dos Beatles é o disco com o melhor som de todos os tempos. Ponto. Qualquer um deles. Escolha um. Somos compelidos a gastar quantias incalculáveis de dinheiro comprando o equipamento que supostamente foi usado para fazer essa mágica acontecer (porque tem que ser o equipamento, certo?). Você ouviu um álbum dos Beatles com ‘qualidade de áudio’ em mente recentemente? Alguma vez? O que você se lembra?
Pegue Let It Be, por exemplo. Ele soa bem? Por favor, escute agora. (Os Beatles foram inteligentes o suficiente para não colocar sua música no Spotify, então você pode ter que comprar a faixa se não a possui. Droga, justo quando pensamos que a música era gratuita).
Escute aqui:
iTunes: https://itunes.apple.com/us/album/let-it-be/id401151866
Soou diferente do que você esperava? Lembrou-se? Um pouco mais brilhante, talvez? Talvez a bateria não estivesse posicionada como você pensaria? Outro artista muito discutido é Steely Dan. Especialmente o álbum AJA. Discussões sem fim sobre a maestria da engenharia, as semanas gastas para conseguir timbres, a atenção incansável aos detalhes, etc, etc.... Esse está no Spotify. Confira.
Escute aqui:
iTunes: https://itunes.apple.com/us/album/aja/id64958
Spotify: https://play.spotify.com/album/51XjnQQ9SR8VSEpxPO9vrW
O que você achou? Ouviu algo abaixo de 50 Hz? Não muito, certo? Isso funcionaria em um dos seus discos? E quanto aos sons da bateria em Peg? Que tal você comparar Black Cow e Peg?
Interessante, não?
Talvez seja importante que devêssemos, no espírito de melhorar o que fazemos, praticar dissociar uma grande música da forma como ela soa. É muito importante não esquecer de colocar as lendas em perspectiva e considerar quando os discos foram feitos, em quais condições, como eles afetaram a cultura de sua época e outras coisas assim. Além disso, e principalmente, devemos aprender a moldar nossa própria opinião pessoal sobre o que achamos que ‘soa bem’ e o que não soa. Como exemplo, pessoalmente, acho que o senhor que projetou os fones de ouvido Beats by Dre e eu não conseguiríamos ter uma conversa pacífica sobre o assunto. Apenas um exemplo.
Um álbum que é o número um perene nas paradas de ‘é o disco com o melhor som de todos os tempos’ é ‘Dark Side Of the Moon’ do Pink Floyd, que saiu em 1973. Vamos dar uma olhada nele e ver o que está acontecendo aqui.
Escute aqui:
iTunes:: https://itunes.apple.com/us/album/dark-side-moon-remastered/id700016575
Spotify: https://play.spotify.com/album/3cMpdE2Z4lKfVXJShcvBMW
*nota: estas são versões 'remasterizadas', que seriam um bate-papo separado sobre rabos de cavalo em si.
No período em que as bandas pop realmente davam tempo à sua música, permitiam-se longas introduções e músicas de 7 minutos e interlúdios selvagens. Da mesma forma, Dark Side começa com Speak to me, que não é uma música, apresenta palavra falada, uma pré-apresentação dos sons da máquina ‘Money’ (mostra o entendimento da banda sobre o conceito de abertura de uma sinfonia, legal), alguns baixos sintéticos e um enorme e gordo som de batida de coração que provavelmente sacudiu o sistema de som de todo mundo na época. Não havia 808s em 1973. Speak To Me também apresenta uma quantidade razoável de chiado, logo no início da canção, e um agradável zumbido de 60Hz no lado direito para dar um toque especial. Como esse zumbido se encaixa no seu conceito pessoal de ‘bom som’? Você permitiria essa quantidade de ruído em um dos seus projetos? E quanto ao zumbido?
E se, na época, o chiado nos discos fosse parte da vida e as pessoas não pensassem nada sobre isso, mas um som de bateria tão gordo como esse fosse surpreendente e fizesse as pessoas quererem ouvi-lo repetidamente? Em Breathe (que, a propósito, tem uma introdução de um minuto e trinta segundos para uma música de dois minutos e trinta segundos) há uma relação entre a bateria e o baixo que soa bastante robusta. Existe uma certa presença e estética nessas baterias que eu acredito que estava bem à frente de seu tempo em 1973. Se você já ouviu o álbum anterior do Pink Floyd, não ouvirá esse tipo de posicionamento. Você pode ouvir alguns trechos de Obscured by Clouds ou When You’re In do álbum de 1972 (feito apenas um ano antes de Dark Side) e ouvirá algo mais próximo do que estava acontecendo em geral naquela época. Um tem a bateria posicionada à esquerda, o outro tem a bateria bem distante. Burning Bridges tem a bateria essencial dos anos 70. Muitos pock e pouco boom. Apenas um ano se passou. Alguém, talvez Alan Parsons, decidiu durante a mixagem de Dark Side empurrar essas baterias para cima e conseguir superar as limitações do sistema da época e torná-las mais gordas do que o usual. Sempre que podiam.
Vamos voltar a Dark Side. A maioria das músicas após Breathe retorna a um estilo de bateria mais fino e distante, exceto Any Colour You Like. Confira. Você gosta de como a bateria soa em Eclipse ou Us And Them? São as baterias com o melhor som de TODOS? O que diríamos ao cara com o rabo de cavalo na próxima feira NAMM ou AES? Como você se sente sobre a diferença de timbre entre Breathe ou Any Colour You Like e o muito mais brilhante Time, por exemplo. (Está tudo bem não ouvir a música toda quando o artista não está na sala, então, a menos que David Gilmour esteja sentado com você, sinta-se à vontade para mudar de música).
Ok, eu vou escrever: há muitos, muitos defeitos no som de Dark Side of The Moon. Então, por que o status lendário de ser ‘o disco com o melhor som de TODOS os tempos, cara’? Boa pergunta. Acho que, acima de tudo, na época, essa era uma música incrível. Confira o que todos os outros estavam fazendo musicalmente e sonoramente na época, às vezes no mesmo estúdio: o site BestEverAlbums.com tem isso para nós
Bem louco quando ouvido um após o outro, não é? Com Dark Side, Pink Floyd inventou o boom estilo 808 antes do hip-hop, deu uma verdadeira presença às baterias sempre que podiam, apresentou sintetizadores modulares arpegiados antes de Jean Michel Jarre e solos de saxofone lisos, estilo smooth-jazz sobre música de back beat décadas antes do smooth jazz. Eles usaram reverb e delays como uma ferramenta criativa em vez de recriar um espaço ausente (veja as vozes ou saxofone em Money), inventaram o som encontrado em discos pop (a máquina de dinheiro novamente em ‘Money’), usaram pans e pots para mover coisas pela imagem estéreo sem automação e muitas, muitas outras inovações que eram muito difíceis de realizar com o equipamento da época (tente configurar um delay exato para o tempo quando é gerado por uma máquina de fita em loop e me mande um cartão postal). Era algo psicodélico, cara. E novo. E soava incrível para a época. Mas como tudo que é novo, envelhece após um tempo. E outras pessoas alcançam. E ripam as ideias. E as melhoram. E a consciência pública evolui. E o gosto evolui. E o equipamento melhora..
..mas às vezes senhores distintos com rabos de cavalo distintos ficam um pouco presos no passado. Todos nós somos culpados disso com algumas coisas. Aposto que a torta de maçã que minha mãe fez quando eu era criança soa melhor do que a sua, por exemplo. Tenho certeza. Então, no final, é fácil: sempre que alguém lhe disser que algo soa bem, melhor, o melhor, ou o melhor de TODOS os tempos, cara, anote para conferir você mesmo antes de adicionar isso ao seu banco de conhecimento. O que fazemos é baseado no gosto. 100%. É assim que você o forma.
Saudações,
Fab Dupont